Pertence a uma fase furiosamente experimental, em que o que se tentava contar era quase sufocado pela metalinguagem. O resultado era um hermetismo pedante, quase incompreensível. Foi escrito em 1976 em Porto Alegre, e publicado no ano seguinte pela extinta revista gaúcha Cultura Contemporânea.


Era preciso que fosse um momento absolutamente perfeito — ele foi dizendo, uma tarde afinal de junho, e o que se poderia dizer afinal sobre tardes afinal de junho senão coisas majestosas como um allegro barroco, ele sorvia o conhaque e vezenquando atiçava as brasas da lareira com o atiçador de bronze? cobre? ferro? prata? com muito cuidado para que o que chovia lá fora miúdo e o crepitar das brasas e o estalar da madeira e os movimentos que fazia distendendo, contraindo a coluna para atiçar o fogo e o crepitar e o estalar e o miúdo e ainda o que ia dizendo, com cuidado para que o ritmo não sofresse alterações, imperfeições, tempo sem jaça, que fosse, agitando de leve no ar o líquido dourado no cálice aquecido:
— Eu, fazia tanto tempo que — um tanto brutal hesitar agora, mancha de vinho na renda, mas reformulava, pequenas interrupções, ai pequenas interrupções, a luz dourando o cabelo dela sentada à sua frente, mas reformulava tentando de outro jeito:
— Já não era mais possível continuar ocultando? fingindo? negando? mentindo? que — optou pelos quatro, sem interrogações, ficava bem esse tom hesitante, mas uma porta batia ao longe, na rua um carro tentava inutilmente dar a partida, o motor raspava areia, zinco, se fosse possível um silêncio absoluto para finalmente dizer:
— Eu tenho feito fantasias loucas com você — ela tão irreal no sofá antigo, as samambaias caindo por trás, tropical, oriental, colonial, tudo ao mesmo tempo, um rubi na testa e também uma tiara de pitangas (bonito isso, aprovou contente), mais uma touca rendada de sinhazinha, os três simultâneos, e retomando de outro jeito:
— Tanto medo, você me entende? — como passos furtivos, cascalho pisado de madrugada, a descarga da privada literalmente cagando no entremeio do retinir de cristais (aprovou outra vez: sonoro), mas ela não sorria nem movia músculo algum no rosto, de certa forma era como se fizesse uma ginástica de relaxamento facial, mas tão-tão-dizer-isso-assim, malares pétreos, talvez melhor, um abscôndito langor. melhor ainda, entusiasmou-se levemente ansioso, apenas o tempo da cinza cair? pingar? gotejar? poluir quem sabe? a calça de veludo? alpaca? flanela? casimira? continuando pois:
— Quase três anos, é muito tempo calado. Hoje finalmente eu — passou a língua contra os dentes por dentro, algumas superfícies ásperas, senzalas? sibérias? sertões? saaras? e foi então que sentiu e chegou a pensar num parágrafo especial, mas contra todas as expectativas não havia drama, um primeiro pré-molar superior esquerdo, seria exatamente isso? como um chiclete, não, mais consistente, um amendoim duro, um milho de pipoca desses que não arrebentam, uma bala de hortelã, envolveu-o com a língua para trazê-lo até bem perto dos incisivos e disfarçado levou a mão à boca, como se tossisse suave? contido? discreto? melancólico? fatigado? os dedos seguraram confirmando: sim, um primeiro pré-molar superior esquerdo, inteiro, irregular, sofrido de muitas meias-solas, rodou-o entre o indicador e o polegar, abstraído, até os óculos de aro frouxo escorregarem para a ponta do nariz recolocou-o na boca, ela esperava, ele ajeitou os óculos, ele esfregou as mãos para gerar energia, ela esperava, ele respirou sete vezes, profundamente, alargando primeiro o ventre, depois afastando as costelas e finalmente elevando os omoplatas, pulmões estufados, e assoprou de uma só vez, num tranco, ela esperava, ai como ela esperava, a coisa escura plantada súbita na sala fez com que, como quem vira a página, ele decidisse assim como redizer o que não tinha dito:
— Escuta, foi um engano. Eu não estava absolutamente levando a sério o que dizia — o sofá tinha molas arrebentadas, as samambaias eram algumas de plástico, outras raqufticas, amareladas, olhar pela janela então e nada nem ninguém para ajudar, contou para si mesmo devagarmente punitivo: Era uma vez um homem sentado numa cadeira dura rodando dentro da boca um primeiro pré-molar superior esquerdo recém perdido, numa sala vazia. Atrás da janela de vidros baços de umidade e sujeira podia-se ver uma tarde molhada talvez de junho ao fundo de árvores secas de galhos-garras eriçados contra um céu de estopa — fora uma vez, e ela não esperava mais, restara uma pitanga madura sobre a mancha de porra envelhecida de alguma punheta no assento do sofá, ou nem ao menos isso, aceitou concluindo:
— Eu não consigo entender nada do que se passa
— meu amor secreto, meu amor calado, não acrescentou, talvez agora desse um suspiro mas não morresse, ou engolisse o dente para rasgar as tripas ou quem sabe cuspi-lo longe convulsivo como numa hemoptise, e sobre o chão vomitar a tarde? a história? a perda? a morte? o medo? a solidão? quem sabe o nojo antigo sedimentado e sem remédio. E acabava assim, de repente, ainda que não fosse absolutamente perfeito nem redondo, chovera demais nos últimos dias e havia tantos sapos pelos quintais semi-abandonados, os charcos, os poços, as minhocas retorcidas nas lamas, os plurais e a língua singular apertando tão violenta o dente contra o lábio que talvez escorresse um filete de sangue maduro sobre o branco da camisa, mas antes disso, sem efeitos, secamente, acabava assim, era uma pena, todos sentimos muitíssimo, mas que se há de fazer se acaba mesmo assim?

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| Por ludelfuego | 29.7.07 | 20:47.

6 Responses to “POR UMA TARDE DE JUNHO”

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